O Ministério Público do Estado do Paraná interpôs Ação Civil Pública com a finalidade de impedir a realização de evento que cause maus tra...
O
Ministério Público do Estado do Paraná interpôs Ação Civil Pública com
a finalidade de impedir a realização de evento que cause maus tratos em
animais (sedéns de qualquer espécie, natural e material, esporas de
qualquer tipo, corda americana, choques, peiteiras, barrigueiras,
sinos, laços e outros). Alegou que em rodeios e provas de laço são
comuns práticas que tratam os animais de forma cruel, causando-lhes
sofrimento físico e mental. Requereu que fosse proibida durante a “IV
Festa do Laço Comprido”, realizada no Município de Rosário do Ivaí/PR,
qualquer prática que resulte em sofrimento animal desnecessário, nos
termos: “uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos
animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos
pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos,
choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo,
ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping,
bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que
tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem
como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a
animais”. Ao final pugnou pela antecipação da tutela pretendida.
A juíza Fernanda Orsomarzo deferiu o pleito do Ministério Público e afirmou que o ordenamento jurídico brasileiro é pífio em matéria protetiva, acabando por reproduzir perversa lógica de dominação e “coisificação” de animais. Asseverou: “A instrumentalização dos animais é verificada, dentre outras situações, na indústria do entretenimento, como circos, rodeios, zoológicos, etc. Sob o pretexto da diversão e da cultura, o homem, autointitulado “ser racional”, impõe aos demais seres toda sorte de humilhação, penúria e dor.” A magistrada ainda citou a Declaração Universal Dos Direitos dos Animais, que dispõe que os animais não devem ser utilizados para o divertimento humano, e que os espetáculos e exibições são incompatíveis com a dignidade animal.
Destacou que a questão não está em considerar se os animais são capazes de raciocinar ou falar, mas se são capazes de sofrer. E finaliza: “Nesse interim, “cultura” que subjuga e instrumentaliza vidas, camuflando os mais escusos interesses financeiros, não é “cultura”. É tortura. “Diversão” que explora o sofrimento de seres que não têm condições de defesa não é “diversão”. É sadismo. “Esporte” em que um dos envolvidos não optou por competir não é “esporte”. É covardia.“
Com a decisão liminar, restou proibido durante a “IV Festa do Laço Comprido”, o uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais. Foi fixada multa diária no valor de R$ 100.000,00, em caso de descumprimento da decisão.
Confira abaixo a decisão na íntegra (os nomes das partes foram substituídos pelas iniciais).
Autos nº 0000725-82.2015.8.16.0085
Ação Civil Pública – Meio Ambiente
Requerente: Ministério Público do Estado do Paraná
Requeridos: R. A. F. F., D. B. de S. e Município de Rosário do Ivaí/PR
Vistos, etc.
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Paraná em face de R. A. F. F., D. B. de S. e Município de Rosário do Ivaí/PR, com a finalidade específica de impedir a realização, nesta Comarca de Grandes Rios, de qualquer tipo de evento em que se utilizem instrumentos que causem maus tratos aos animais (sedéns de qualquer espécie, natural e material, esporas de qualquer tipo, corda americana, choques, peiteiras, barrigueiras, sinos, laços e outros). Para tanto, argumenta-se que rodeios e provas de laço são práticas que submetem os animais à crueldade, havendo demonstração científica de que os instrumentos utilizados durante eventos deste tipo causam-lhes intenso sofrimento físico e mental. Aponta-se que a lei federal nº 20519/2002, ao permitir e regulamentar a prática de rodeios e outras competições envolvendo semoventes, é inconstitucional, já que afronta diretamente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição Federal. Juntou-se jurisprudência pátria contrária à realização de rodeios e eventos similares.
Em sede liminar, pleiteia o Ministério Público, por meio de seu representante, a proibição, durante a “IV Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer nos dias 8 e 9 de agosto de 2015, no Município de Rosário do Ivaí, nesta Comarca de Grandes Rios, “do uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais”.
É o relatório.
DECIDO.
De início, necessário esclarecer que a antecipação dos efeitos da tutela demanda a demonstração dos seguintes requisitos: i) prova inequívoca, que convença o juiz da verossimilhança da alegação do autor; ii) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (ou abuso do direito de defesa ou manifesto intuito protelatório do réu); iii) possibilidade de reversão da medida que foi antecipada
Ademais, é de se salientar que não há nenhuma restrição expressa, posta pelo legislador brasileiro, que impeça a concessão da tutela antecipada initio litis e inaudita altera parte.
Feita tal explanação, o pedido de antecipação dos efeitos da tutela merece deferimento, na medida em que estão presentes os aludidos requisitos (todos constantes do artigo 273, do CPC), conforme se demonstrará na sequência.
Pretende o Ministério Público, em sede liminar, a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que seja proibida a utilização de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, durante a realização da “VI Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer entre os dias 8 e 9 de agosto de 2015, no Município de Rosário do Ivaí/PR, nesta Comarca de Grandes Rios.
A verossimilhança das alegações decorre da documentação encartada aos autos (mov. 1.2 a 1.4), dando conta de que o evento realizar-se-á neste final de semana (dias 8 e 9 de agosto), tendo como atrativo principal a “Prova do Laço Comprido” nas modalidades “Troféu Cidade”, “Criolaço”, “Vaca Gorda” e “Laço Milionário”.
O perigo de dano irreparável funda-se na evidente e real possibilidade de infligir sofrimento a seres indefesos, expostos a lesões irreversíveis a até mesmo a risco de morte.
A pretensão deduzida pelo Parquet vem amparada, primeiramente, no próprio texto constitucional. Revelando a intenção do constituinte em substituir a concepção antropocêntrica que até então permeava grande parte, senão a totalidade, da legislação em vigor, a Magna Carta apresenta uma visão inovadora no que tange às normas protetivas, estabelecendo uma gama de incumbências ao Poder Público.
Nesse contexto, o Título II da Constituição Federal, ao tratar “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, legitima, em seu art. 5º, inciso LXXIII, todo e qualquer cidadão ao exercício da ação popular com a finalidade de anular ato nocivo ao meio ambiente. A proteção ambiental, como se vê, foi elevada à categoria de “direito fundamental de todo cidadão”.
Citemos ainda o Título VII, referente à “Ordem Econômica e Financeira”, que estabelece como um dos “Princípios Gerais da Atividade Econômica” a defesa do meio ambiente (art. 170, VI), bem como o Título VIII, “Da Ordem Social”, o qual prevê, em seu art. 200, VIII, o equilíbrio ambiental como fator determinante a uma vida saudável.
Ainda no Título “da Ordem Social”, a Magna Carta reserva o Capítulo VI, intitulado “Do Meio Ambiente”, ao regramento das questões ambientais. Nesse sentido, importante a citação do caput do art. 225, que assim previu:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Ora, é inegável que tal comando constitucional atribui aos animais não-humanos uma posição mínima de direito, qual seja, a de não serem submetidos a tratamentos cruéis ou a práticas arrisquem sua função ecológica ou a preservação de sua espécie. É possível, pois, avistar a consideração dos animais não-humanos com direitos independentes e incondicionados.
Deveras, o disposto no enunciado ora tratado exterioriza o reconhecimento do direito à vida, à existência digna dos seres vivos, independentemente de interesses humanos. Pode, inclusive, fundamentar a vedação a algumas práticas usuais, tais como o uso de animais em experiências científicas, a exploração desregrada do trabalho não-humano, e, como é o caso dos autos, as manifestações culturais que violentem tais seres.
Todavia, ainda que se reconheça a nobre pretensão do constituinte, certo é que o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se pífio em matéria protetiva, sendo que, por vezes, apenas reproduz a perversa lógica de dominação que fundamenta o processo de “coisificação” que acomete os animais, reforçando tradicionais convicções de serem meros objetos ao desfrute do homem.
A instrumentalização dos animais é verificada, dentre outras situações, na indústria do entretenimento, como circos, rodeios, zoológicos, etc. Sob o pretexto da diversão e da cultura, o homem, autointitulado “ser racional”, impõe aos demais seres toda sorte de humilhação, penúria e dor.
Sem dúvida, o lazer é essencial ao desenvolvimento saudável da pessoa humana; entretanto, sua efetivação não pode se dar em detrimento do bem-estar de outros seres igualmente dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento.
Atualmente, a utilização indiscriminada de animais para fins humanos de lazer relega a um segundo plano os interesses de tais seres, imprimindo-lhes, em maior ou menor grau, alguma espécie de padecimento. E, no caso dos autos, inegável que a prática da prova do laço submeterá os animais às mais variadas torturas, fustigações e constrangimentos para o divertimento do público. Conforme bem esclareceu o representante ministerial, nas provas que se pretendem realizar “são utilizados instrumentos que, independentemente de ocasionarem ou não lesões, impingem sofrimento aos animais. É sabido que os animais irracionais são dotados de sentimentos e instintos. Assim, como os animais racionais, sentem dor, medo, angústia, stress, prazer, desprazer, tristeza etc. Os peões costumam utilizar laços para outras modalidades, dentre elas o “pega garrote”, e o “laço de oito braças”, que provocam constantes quedas do animal-vítima ao solo, violentamente. Prática comum também é a “mesa da amargura”, em que grupos de pessoas ficam sentados em mesas na arena aguardando a ação do animal que se lança em direção às mesas e acabam por se ferir. Promotoria de Justiça da Comarca de Grandes Rios/PR Página 7 de 34 Frise-se que o animal, de regra, é estimulado com choques e estocadas produzidos por instrumentos contundentes, a fim de que se torne bravio antes de ingressar na arena”.
Não se ignora que a Lei 10519/2002 regulamenta a nefasta prática, estabelecendo diretrizes a serem cumpridas durante a realização de rodeios. Todavia, é de se salientar que a atividade, enquanto evento em si, pode não ser ilegal ou inconstitucional, mas as práticas que causam sofrimento ao animal certamente o são.
A Lei 10519/2002, assim, representa um verdadeiro retrocesso em matéria ambiental e protetiva, já que permite o uso de esporas e sédem, embora condicionando que tais materiais sejam confeccionados em material macio que não cause lesões. Ora, considerando que tais apetrechos destinam-se a fustigar o animal, percebe-se a clara intenção do legislador em mascarar e legitimar uma prática cruel e contrária à Constituição Federal.
Corroborando com tal entendimento, a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça Paranaense vem reconhecendo a ilegalidade e a inconstitucionalidade desses eventos. Nesse sentido, citase trecho do acórdão nº 11016110 PR 1101611-0, julgado em 19/03/2014, de relatoria do ilustre Desembargador Abraham Lincoln Calixto:
“(…) verifica-se que nos dias atuais, diante da evolução da sociedade e, inclusive, da própria legislação, não mais se tolera certas práticas que, embora enraizada em determinadas regiões do país menos desenvolvidas, implicam nitidamente em maus tratos aos animais. No caso em apreço, constata-se pelo anúncio de fls. 99 as provas de `pega de garrote’, `mesa da amargura’, `prova do leite’, `fut boi’, `pega do xucro’, sendo que todas têm por base a colocação na arena de animal bravio ou que não tenha familiaridade com os `espetáculos realizados’, de forma a se tornar verdadeiro desafio aos participantes dominar o animal e/ou concretizar a prova”.
Nestes casos, não há qualquer dúvida a respeito do sofrimento físico e psíquico vivenciado pelos animais, pois ainda que se considere que foram transportados e tratados de forma adequada até o momento das provas, durante a realização destas os animais são submetidos a condições que lhes acarretam estresse , diante da iluminação e barulho causado pelo som e pelas pessoas. Não obstante, há evidente maus tratos durante as provas acima referidas, sendo que muitas das vezes, acarreta lesões no animais, diante do esforço que empregam para se livrarem da situação em que são colocados. (grifo nosso)
Outro não é o entendimento da jurisprudência pátria:
Contravenção Penal – Crueldade contra animais – Circo de rodeios – Espetáculos que mascaram, em substância, um simulacro de touradas – Cassação de Alvará de Funcionamento – Pretendida violação do direito líquido e certo – Pretensão repelida – Aplicação do art. 64 da Lei de Contravenções Penais – Ilícito Penal – Atividade que incide em norma punitiva da Lei das Contravenções Penais – Invocação inadmissível, conseqüentemente, de direito líquido e certo – Segurança denegada. Uma vez que a autoridade pública informa que a atividade executada pelo impetrante, em seu chamado circo de rodeios, incide na norma punitiva do art. 64 da Lei de Contravenções Penais, a segurança deve ser denegada. Ninguém pode pretender direito líquido e certo a prática de um ilícito penal. Saber que os animais utilizados pelo impetrante na realização de seu espetáculos eram realmente tratados com crueldade, qual o afirma, com presunção de verdade, à autoridade pública, constitui matéria de fato, cuja apuração transcende o âmbito do Mandado de Segurança. O que, todavia, é fora de dúvida é que ninguém pode pretender direito, muito menos líquido e certo, a perpetrar, sob égide da Justiça, um ilícito penal (TJSP. MS nº 74.276. Rel. Des. Renato Nalini)
Não por outro motivo, a “farra do boi”, prática sádica na qual um numeroso grupo de pessoas lincha publicamente bois e garrotes até a morte, foi considerada inconstitucional em decisão histórica proferida em 03.06.1997. Após o julgamento de improcedência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o Pretório Excelso manifestou o seguinte entendimento, por maioria de votos:
COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da PODER JUDICIÁRIO Comarca de Grandes Rios Estado do Paraná 10 observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”.
As rinhas de galos, de igual modo, restaram condenadas, sendo hoje tal conduta criminosa, nos estritos termos do art. 32 da Lei 9.605/98, e inconstitucional, de acordo com o art. 225, §1º, VII, CF. Além disso, já podem ser colhidas manifestações dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Supremo Federal, no sentido de declarar a inconstitucionalidade de intentos promovidos com o objetivo de alterar a lei ambiental para legalizar as brigas de galo no país. São exemplos:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE “BRIGAS DE GALO”. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente .
EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. “Rinhas” ou “Brigas de galo”. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas “rinhas” ou “brigas de galo”.
Segundo o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, “nenhum animal deve ser usado para o divertimento do homem. A exibição de animais e os espetáculos que utilizam animais são incompatíveis com a dignidade do animal”.
Infligir dor, sofrimento e morte a terceiros inocentes para obtenção de prazer é moralmente reprovável. Ora, a cultura de um povo deve ser interpretada como todo o processo que, de algum modo, influencia o desenvolvimento ético e moral do homem como ser pensante e racional, e não como algo que implica na desconsideração dos interesses de outros seres.
Nesse interim, “cultura” que subjuga e instrumentaliza vidas, camuflando os mais escusos interesses financeiros, não é “cultura”. É tortura.
“Diversão” que explora o sofrimento de seres que não têm condições de defesa não é “diversão”. É sadismo.
“Esporte” em que um dos envolvidos não optou por competir não é “esporte”. É covardia.
Assim, a arbitrária utilização de critérios humanos para a atribuição de consideração moral aos animais mostra-se arcaica, já que “a questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘Eles são capazes de falar?’, mas sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’ (BENTHAM apud LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 393).
Isto posto, considerando que as práticas culturais não legitimam a inobservância do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, de rigor o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 10519/2002, a qual regulamenta a prática do rodeio e eventos similares.
E, ainda que assim não o fosse, é de se salientar que, como bem explicou o ilustre Promotor de Justiça desta Comarca, os organizadores do evento não comprovaram o efetivo provimento das disposições contidas nos artigos 3º e 6º da malfadada Lei 10519/2002, a saber:
Art. 3º Caberá à entidade promotora do rodeio, a suas expensas, prover:
I – infra-estrutura completa para atendimento médico, com ambulância de plantão e equipe de primeiros socorros, com presença obrigatória de clínico-geral;
II – médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo maus tratos e injúrias de qualquer ordem;
III – transporte dos animais em veículos apropriados e instalação de infra-estrutura que garanta a integridade física deles durante sua chegada, acomodação e alimentação;
IV – arena das competições e bretes cercados com material resistente e com piso de areia ou outro material acolchoador, próprio para o amortecimento do impacto de eventual queda do peão de boiadeiro ou do animal montado.
Art. 4º Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas.
§ 1º As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto dos animais.
§ 2º Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos.
§ 3º As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.
Art. 5º A entidade promotora do rodeio deverá comunicar a realização das provas ao órgão estadual competente, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, comprovando estar apta a promover o rodeio segundo as normas legais e indicando o médico veterinário responsável.
Art. 6º Os organizadores do rodeio ficam obrigados a contratar seguro pessoal de vida e invalidez permanente ou temporária, em favor dos profissionais do rodeio, que incluem os peões de boiadeiro, os “madrinheiros”, os “salvavidas”, os domadores, os porteiros, os juízes e os locutores.
Não restou comprovada pelos organizadores a contratação de ambulância, com presença obrigatória de clínico geral, tampouco que a utilização dos apetrechos não causará injúrias ou sofrimentos aos animais. Ademais, não demonstrou-se a contratação de seguro pessoal de vida e invalidez àqueles que ali trabalhariam.
Ante o exposto, DEFIRO A LIMINAR PLEITEADA, para o fim de proibir, durante a “VI Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer entre os dias 8 e 9 de agosto de 2015, no município de Rosário do Ivaí/PR, nesta Comarca de Grandes Rios, o uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais, sob pena de multa diária no valor de R$100.000,00 (cem mil reais), sem prejuízo de responsabilização penal e administrativa.
DETERMINO, ainda, a fiscalização da presente ordem pela Força Verde da Polícia Militar, bem como pelos Policiais Militares do Destacamento de Rosário do Ivaí.
Expeça-se ofício à Polícia Militar do Estado do Paraná.
Expeçam-se, com urgência, mandados, intimando-se pessoalmente os requeridos.
Citem-se os requeridos, nas pessoas de seus representantes legais, para que, querendo, respondam os termos da exordial proposta, observando-se as formalidades legais.
Cumpram-se as disposições contidas no Código de Normas da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Paraná.
Intimem-se. Dil. necessárias.
Grandes Rios, 6 de agosto de 2015.
Fernanda Orsomarzo
Juíza de Direito
Imagem ilustrativa do post: rodeio // Foto de: Thiago Piccoli // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/85763364@N00/480756143/
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/
Fonte: Por Patrícia Cordeiro e blog Entre Mates e Guitarra
A juíza Fernanda Orsomarzo deferiu o pleito do Ministério Público e afirmou que o ordenamento jurídico brasileiro é pífio em matéria protetiva, acabando por reproduzir perversa lógica de dominação e “coisificação” de animais. Asseverou: “A instrumentalização dos animais é verificada, dentre outras situações, na indústria do entretenimento, como circos, rodeios, zoológicos, etc. Sob o pretexto da diversão e da cultura, o homem, autointitulado “ser racional”, impõe aos demais seres toda sorte de humilhação, penúria e dor.” A magistrada ainda citou a Declaração Universal Dos Direitos dos Animais, que dispõe que os animais não devem ser utilizados para o divertimento humano, e que os espetáculos e exibições são incompatíveis com a dignidade animal.
Destacou que a questão não está em considerar se os animais são capazes de raciocinar ou falar, mas se são capazes de sofrer. E finaliza: “Nesse interim, “cultura” que subjuga e instrumentaliza vidas, camuflando os mais escusos interesses financeiros, não é “cultura”. É tortura. “Diversão” que explora o sofrimento de seres que não têm condições de defesa não é “diversão”. É sadismo. “Esporte” em que um dos envolvidos não optou por competir não é “esporte”. É covardia.“
Com a decisão liminar, restou proibido durante a “IV Festa do Laço Comprido”, o uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais. Foi fixada multa diária no valor de R$ 100.000,00, em caso de descumprimento da decisão.
Confira abaixo a decisão na íntegra (os nomes das partes foram substituídos pelas iniciais).
Autos nº 0000725-82.2015.8.16.0085
Ação Civil Pública – Meio Ambiente
Requerente: Ministério Público do Estado do Paraná
Requeridos: R. A. F. F., D. B. de S. e Município de Rosário do Ivaí/PR
Vistos, etc.
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Paraná em face de R. A. F. F., D. B. de S. e Município de Rosário do Ivaí/PR, com a finalidade específica de impedir a realização, nesta Comarca de Grandes Rios, de qualquer tipo de evento em que se utilizem instrumentos que causem maus tratos aos animais (sedéns de qualquer espécie, natural e material, esporas de qualquer tipo, corda americana, choques, peiteiras, barrigueiras, sinos, laços e outros). Para tanto, argumenta-se que rodeios e provas de laço são práticas que submetem os animais à crueldade, havendo demonstração científica de que os instrumentos utilizados durante eventos deste tipo causam-lhes intenso sofrimento físico e mental. Aponta-se que a lei federal nº 20519/2002, ao permitir e regulamentar a prática de rodeios e outras competições envolvendo semoventes, é inconstitucional, já que afronta diretamente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição Federal. Juntou-se jurisprudência pátria contrária à realização de rodeios e eventos similares.
Em sede liminar, pleiteia o Ministério Público, por meio de seu representante, a proibição, durante a “IV Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer nos dias 8 e 9 de agosto de 2015, no Município de Rosário do Ivaí, nesta Comarca de Grandes Rios, “do uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais”.
É o relatório.
DECIDO.
De início, necessário esclarecer que a antecipação dos efeitos da tutela demanda a demonstração dos seguintes requisitos: i) prova inequívoca, que convença o juiz da verossimilhança da alegação do autor; ii) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (ou abuso do direito de defesa ou manifesto intuito protelatório do réu); iii) possibilidade de reversão da medida que foi antecipada
Ademais, é de se salientar que não há nenhuma restrição expressa, posta pelo legislador brasileiro, que impeça a concessão da tutela antecipada initio litis e inaudita altera parte.
Feita tal explanação, o pedido de antecipação dos efeitos da tutela merece deferimento, na medida em que estão presentes os aludidos requisitos (todos constantes do artigo 273, do CPC), conforme se demonstrará na sequência.
Pretende o Ministério Público, em sede liminar, a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que seja proibida a utilização de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, durante a realização da “VI Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer entre os dias 8 e 9 de agosto de 2015, no Município de Rosário do Ivaí/PR, nesta Comarca de Grandes Rios.
A verossimilhança das alegações decorre da documentação encartada aos autos (mov. 1.2 a 1.4), dando conta de que o evento realizar-se-á neste final de semana (dias 8 e 9 de agosto), tendo como atrativo principal a “Prova do Laço Comprido” nas modalidades “Troféu Cidade”, “Criolaço”, “Vaca Gorda” e “Laço Milionário”.
O perigo de dano irreparável funda-se na evidente e real possibilidade de infligir sofrimento a seres indefesos, expostos a lesões irreversíveis a até mesmo a risco de morte.
A pretensão deduzida pelo Parquet vem amparada, primeiramente, no próprio texto constitucional. Revelando a intenção do constituinte em substituir a concepção antropocêntrica que até então permeava grande parte, senão a totalidade, da legislação em vigor, a Magna Carta apresenta uma visão inovadora no que tange às normas protetivas, estabelecendo uma gama de incumbências ao Poder Público.
Nesse contexto, o Título II da Constituição Federal, ao tratar “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, legitima, em seu art. 5º, inciso LXXIII, todo e qualquer cidadão ao exercício da ação popular com a finalidade de anular ato nocivo ao meio ambiente. A proteção ambiental, como se vê, foi elevada à categoria de “direito fundamental de todo cidadão”.
Citemos ainda o Título VII, referente à “Ordem Econômica e Financeira”, que estabelece como um dos “Princípios Gerais da Atividade Econômica” a defesa do meio ambiente (art. 170, VI), bem como o Título VIII, “Da Ordem Social”, o qual prevê, em seu art. 200, VIII, o equilíbrio ambiental como fator determinante a uma vida saudável.
Ainda no Título “da Ordem Social”, a Magna Carta reserva o Capítulo VI, intitulado “Do Meio Ambiente”, ao regramento das questões ambientais. Nesse sentido, importante a citação do caput do art. 225, que assim previu:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Ora, é inegável que tal comando constitucional atribui aos animais não-humanos uma posição mínima de direito, qual seja, a de não serem submetidos a tratamentos cruéis ou a práticas arrisquem sua função ecológica ou a preservação de sua espécie. É possível, pois, avistar a consideração dos animais não-humanos com direitos independentes e incondicionados.
Deveras, o disposto no enunciado ora tratado exterioriza o reconhecimento do direito à vida, à existência digna dos seres vivos, independentemente de interesses humanos. Pode, inclusive, fundamentar a vedação a algumas práticas usuais, tais como o uso de animais em experiências científicas, a exploração desregrada do trabalho não-humano, e, como é o caso dos autos, as manifestações culturais que violentem tais seres.
Todavia, ainda que se reconheça a nobre pretensão do constituinte, certo é que o ordenamento jurídico brasileiro mostra-se pífio em matéria protetiva, sendo que, por vezes, apenas reproduz a perversa lógica de dominação que fundamenta o processo de “coisificação” que acomete os animais, reforçando tradicionais convicções de serem meros objetos ao desfrute do homem.
A instrumentalização dos animais é verificada, dentre outras situações, na indústria do entretenimento, como circos, rodeios, zoológicos, etc. Sob o pretexto da diversão e da cultura, o homem, autointitulado “ser racional”, impõe aos demais seres toda sorte de humilhação, penúria e dor.
Sem dúvida, o lazer é essencial ao desenvolvimento saudável da pessoa humana; entretanto, sua efetivação não pode se dar em detrimento do bem-estar de outros seres igualmente dotados de sensibilidade e passíveis de sofrimento.
Atualmente, a utilização indiscriminada de animais para fins humanos de lazer relega a um segundo plano os interesses de tais seres, imprimindo-lhes, em maior ou menor grau, alguma espécie de padecimento. E, no caso dos autos, inegável que a prática da prova do laço submeterá os animais às mais variadas torturas, fustigações e constrangimentos para o divertimento do público. Conforme bem esclareceu o representante ministerial, nas provas que se pretendem realizar “são utilizados instrumentos que, independentemente de ocasionarem ou não lesões, impingem sofrimento aos animais. É sabido que os animais irracionais são dotados de sentimentos e instintos. Assim, como os animais racionais, sentem dor, medo, angústia, stress, prazer, desprazer, tristeza etc. Os peões costumam utilizar laços para outras modalidades, dentre elas o “pega garrote”, e o “laço de oito braças”, que provocam constantes quedas do animal-vítima ao solo, violentamente. Prática comum também é a “mesa da amargura”, em que grupos de pessoas ficam sentados em mesas na arena aguardando a ação do animal que se lança em direção às mesas e acabam por se ferir. Promotoria de Justiça da Comarca de Grandes Rios/PR Página 7 de 34 Frise-se que o animal, de regra, é estimulado com choques e estocadas produzidos por instrumentos contundentes, a fim de que se torne bravio antes de ingressar na arena”.
Não se ignora que a Lei 10519/2002 regulamenta a nefasta prática, estabelecendo diretrizes a serem cumpridas durante a realização de rodeios. Todavia, é de se salientar que a atividade, enquanto evento em si, pode não ser ilegal ou inconstitucional, mas as práticas que causam sofrimento ao animal certamente o são.
A Lei 10519/2002, assim, representa um verdadeiro retrocesso em matéria ambiental e protetiva, já que permite o uso de esporas e sédem, embora condicionando que tais materiais sejam confeccionados em material macio que não cause lesões. Ora, considerando que tais apetrechos destinam-se a fustigar o animal, percebe-se a clara intenção do legislador em mascarar e legitimar uma prática cruel e contrária à Constituição Federal.
Corroborando com tal entendimento, a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça Paranaense vem reconhecendo a ilegalidade e a inconstitucionalidade desses eventos. Nesse sentido, citase trecho do acórdão nº 11016110 PR 1101611-0, julgado em 19/03/2014, de relatoria do ilustre Desembargador Abraham Lincoln Calixto:
“(…) verifica-se que nos dias atuais, diante da evolução da sociedade e, inclusive, da própria legislação, não mais se tolera certas práticas que, embora enraizada em determinadas regiões do país menos desenvolvidas, implicam nitidamente em maus tratos aos animais. No caso em apreço, constata-se pelo anúncio de fls. 99 as provas de `pega de garrote’, `mesa da amargura’, `prova do leite’, `fut boi’, `pega do xucro’, sendo que todas têm por base a colocação na arena de animal bravio ou que não tenha familiaridade com os `espetáculos realizados’, de forma a se tornar verdadeiro desafio aos participantes dominar o animal e/ou concretizar a prova”.
Nestes casos, não há qualquer dúvida a respeito do sofrimento físico e psíquico vivenciado pelos animais, pois ainda que se considere que foram transportados e tratados de forma adequada até o momento das provas, durante a realização destas os animais são submetidos a condições que lhes acarretam estresse , diante da iluminação e barulho causado pelo som e pelas pessoas. Não obstante, há evidente maus tratos durante as provas acima referidas, sendo que muitas das vezes, acarreta lesões no animais, diante do esforço que empregam para se livrarem da situação em que são colocados. (grifo nosso)
Outro não é o entendimento da jurisprudência pátria:
Contravenção Penal – Crueldade contra animais – Circo de rodeios – Espetáculos que mascaram, em substância, um simulacro de touradas – Cassação de Alvará de Funcionamento – Pretendida violação do direito líquido e certo – Pretensão repelida – Aplicação do art. 64 da Lei de Contravenções Penais – Ilícito Penal – Atividade que incide em norma punitiva da Lei das Contravenções Penais – Invocação inadmissível, conseqüentemente, de direito líquido e certo – Segurança denegada. Uma vez que a autoridade pública informa que a atividade executada pelo impetrante, em seu chamado circo de rodeios, incide na norma punitiva do art. 64 da Lei de Contravenções Penais, a segurança deve ser denegada. Ninguém pode pretender direito líquido e certo a prática de um ilícito penal. Saber que os animais utilizados pelo impetrante na realização de seu espetáculos eram realmente tratados com crueldade, qual o afirma, com presunção de verdade, à autoridade pública, constitui matéria de fato, cuja apuração transcende o âmbito do Mandado de Segurança. O que, todavia, é fora de dúvida é que ninguém pode pretender direito, muito menos líquido e certo, a perpetrar, sob égide da Justiça, um ilícito penal (TJSP. MS nº 74.276. Rel. Des. Renato Nalini)
Não por outro motivo, a “farra do boi”, prática sádica na qual um numeroso grupo de pessoas lincha publicamente bois e garrotes até a morte, foi considerada inconstitucional em decisão histórica proferida em 03.06.1997. Após o julgamento de improcedência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o Pretório Excelso manifestou o seguinte entendimento, por maioria de votos:
COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da PODER JUDICIÁRIO Comarca de Grandes Rios Estado do Paraná 10 observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”.
As rinhas de galos, de igual modo, restaram condenadas, sendo hoje tal conduta criminosa, nos estritos termos do art. 32 da Lei 9.605/98, e inconstitucional, de acordo com o art. 225, §1º, VII, CF. Além disso, já podem ser colhidas manifestações dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Supremo Federal, no sentido de declarar a inconstitucionalidade de intentos promovidos com o objetivo de alterar a lei ambiental para legalizar as brigas de galo no país. São exemplos:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE “BRIGAS DE GALO”. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente .
EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. “Rinhas” ou “Brigas de galo”. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas “rinhas” ou “brigas de galo”.
Segundo o art. 10 da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, “nenhum animal deve ser usado para o divertimento do homem. A exibição de animais e os espetáculos que utilizam animais são incompatíveis com a dignidade do animal”.
Infligir dor, sofrimento e morte a terceiros inocentes para obtenção de prazer é moralmente reprovável. Ora, a cultura de um povo deve ser interpretada como todo o processo que, de algum modo, influencia o desenvolvimento ético e moral do homem como ser pensante e racional, e não como algo que implica na desconsideração dos interesses de outros seres.
Nesse interim, “cultura” que subjuga e instrumentaliza vidas, camuflando os mais escusos interesses financeiros, não é “cultura”. É tortura.
“Diversão” que explora o sofrimento de seres que não têm condições de defesa não é “diversão”. É sadismo.
“Esporte” em que um dos envolvidos não optou por competir não é “esporte”. É covardia.
Assim, a arbitrária utilização de critérios humanos para a atribuição de consideração moral aos animais mostra-se arcaica, já que “a questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘Eles são capazes de falar?’, mas sim, ‘Eles são capazes de sofrer?’ (BENTHAM apud LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos Animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 393).
Isto posto, considerando que as práticas culturais não legitimam a inobservância do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, de rigor o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 10519/2002, a qual regulamenta a prática do rodeio e eventos similares.
E, ainda que assim não o fosse, é de se salientar que, como bem explicou o ilustre Promotor de Justiça desta Comarca, os organizadores do evento não comprovaram o efetivo provimento das disposições contidas nos artigos 3º e 6º da malfadada Lei 10519/2002, a saber:
Art. 3º Caberá à entidade promotora do rodeio, a suas expensas, prover:
I – infra-estrutura completa para atendimento médico, com ambulância de plantão e equipe de primeiros socorros, com presença obrigatória de clínico-geral;
II – médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo maus tratos e injúrias de qualquer ordem;
III – transporte dos animais em veículos apropriados e instalação de infra-estrutura que garanta a integridade física deles durante sua chegada, acomodação e alimentação;
IV – arena das competições e bretes cercados com material resistente e com piso de areia ou outro material acolchoador, próprio para o amortecimento do impacto de eventual queda do peão de boiadeiro ou do animal montado.
Art. 4º Os apetrechos técnicos utilizados nas montarias, bem como as características do arreamento, não poderão causar injúrias ou ferimentos aos animais e devem obedecer às normas estabelecidas pela entidade representativa do rodeio, seguindo as regras internacionalmente aceitas.
§ 1º As cintas, cilhas e as barrigueiras deverão ser confeccionadas em lã natural com dimensões adequadas para garantir o conforto dos animais.
§ 2º Fica expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos nos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos.
§ 3º As cordas utilizadas nas provas de laço deverão dispor de redutor de impacto para o animal.
Art. 5º A entidade promotora do rodeio deverá comunicar a realização das provas ao órgão estadual competente, com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, comprovando estar apta a promover o rodeio segundo as normas legais e indicando o médico veterinário responsável.
Art. 6º Os organizadores do rodeio ficam obrigados a contratar seguro pessoal de vida e invalidez permanente ou temporária, em favor dos profissionais do rodeio, que incluem os peões de boiadeiro, os “madrinheiros”, os “salvavidas”, os domadores, os porteiros, os juízes e os locutores.
Não restou comprovada pelos organizadores a contratação de ambulância, com presença obrigatória de clínico geral, tampouco que a utilização dos apetrechos não causará injúrias ou sofrimentos aos animais. Ademais, não demonstrou-se a contratação de seguro pessoal de vida e invalidez àqueles que ali trabalhariam.
Ante o exposto, DEFIRO A LIMINAR PLEITEADA, para o fim de proibir, durante a “VI Festa do Laço Comprido”, prevista para ocorrer entre os dias 8 e 9 de agosto de 2015, no município de Rosário do Ivaí/PR, nesta Comarca de Grandes Rios, o uso de todo e qualquer subterfúgio capaz de provocar nos animais sofrimento atroz e desnecessário, como sedém ou objetos pontiagudos ou cortantes ou causadores de lesões, peiteras, sinos, choques elétrico ou mecânico e esporas de qualquer tipo, impedindo, ainda, a realização de provas tais como calf roping, team roping, bulldogging e vaquejadas, ou outras que impliquem variações no que tange às técnicas de laçada, lançamento ou agarramento de animais, bem como outros eventos semelhantes que envolvam maus-tratos e crueldade a animais, sob pena de multa diária no valor de R$100.000,00 (cem mil reais), sem prejuízo de responsabilização penal e administrativa.
DETERMINO, ainda, a fiscalização da presente ordem pela Força Verde da Polícia Militar, bem como pelos Policiais Militares do Destacamento de Rosário do Ivaí.
Expeça-se ofício à Polícia Militar do Estado do Paraná.
Expeçam-se, com urgência, mandados, intimando-se pessoalmente os requeridos.
Citem-se os requeridos, nas pessoas de seus representantes legais, para que, querendo, respondam os termos da exordial proposta, observando-se as formalidades legais.
Cumpram-se as disposições contidas no Código de Normas da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Paraná.
Intimem-se. Dil. necessárias.
Grandes Rios, 6 de agosto de 2015.
Fernanda Orsomarzo
Juíza de Direito
Imagem ilustrativa do post: rodeio // Foto de: Thiago Piccoli // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/85763364@N00/480756143/
Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/
Fonte: Por Patrícia Cordeiro e blog Entre Mates e Guitarra
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