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Se se cala o cantor

Depois de alguns anos trocando ideias, livros, experiências, angustias e alegrias em relação as nossas pesquisas, resolvemos sair das nossa...

Depois de alguns anos trocando ideias, livros, experiências, angustias e alegrias em relação as nossas pesquisas, resolvemos sair das nossas zonas de conforto, romper os muros da academia e usar dessa maravilhosa ferramenta, que é a internet, para dialogar com vocês. A partir dessa retomada, nesse momento que, julgamos nós, ser crucial estabelecer um diálogo, tivemos uma recepção bem grande.  O que nos mostra que existem muitas pessoas querendo refletir e dialogar conosco e com seus pares.

Nossa ideia é exatamente essa: trazer uma reflexão e gerar um debate. Importante ressaltar que nós não somos donas da verdade, aliás, ninguém é. Assim como não existe verdade absoluta, existem sim pontos de vista sobre as coisas. Como nos mostra a história, apesar de os fatos não mudarem, as interpretações acerca deles estão em contínua reelaboração através dos vários tempos históricos.

O expressivo volume de visualizações no blog, de compartilhamentos e de comentários (prós e contras) nos levam a pensar que vale a pena se dedicar para observar fenômenos, pesquisar e pensar formas de transformar isso tudo em uma pauta para conversar com vocês. Dessa maneira, agradecemos imensamente à todos pela colaboração e pela vontade de refletir, dialogar e buscar soluções para os problemas apontados. Espero que sigam conosco e que esse blog seja um espaço de reflexão e debate, pois só assim criamos conhecimento e conseguimos nos esclarecer acerca das coisas.

Essa semana, buscando um diálogo entre os últimos dois textos, resolvemos escrever juntas sobre a importância de uma posição esclarecida dos artistas, enquanto seres políticos, conscientes do seu meio e de suas ações. Para tal, Horácio Guarany nos deu o mote e Mary Terezinha o exemplo. Vejamos agora:
SE SE CALA O CANTOR





O grande desafio das pesquisas em música atualmente, principalmente na área de Etnomusicologia, é entender o papel que a música tem na vida das pessoas e por que os seres humanos fazem música. Esse é o grande desafio! Há milhões de pessoas diferentes, vivendo em contextos distintos, usando músicas de formas bem diversas. Atualmente vivenciamos uma mudança das análises baseadas na concepção de música como símbolo para música como ferramenta, ou seja, está havendo uma mudança de foco nas pesquisas. Em vez de tentar achar reflexos identitários, atualmente tem-se buscado, nas pesquisas em música no mundo todo, compreender a mesma como uma ferramenta que está à disposição das pessoas, para gerar experiências de encantamento, ou, por exemplo, influenciar estados de espírito e a própria vida cotidiana.

Esses novos estudos dedicam-se em compreender como as pessoas estão usando a música como um meio de controlar, ou melhor, de influir no seu estado emocional. Ela pode ser utilizada politicamente, tanto por grupos subalternos, quanto pelos grupos hegemônicos, como forma de controle, estando a política sempre presente em qualquer contexto musical. A música pode envolver desde a política do indivíduo (a construção de sua identidade), até questões políticas de grupos específicos, e ainda se referirá a questões muito mais amplas. Não há música sem dimensão política, até mesmo porque questões de poder estão presentes em todas as relações sociais.

Pensando nisso, chegamos a canção emblemática de Horácio Guarany “Si se calla el cantor” (1975) que nos serviu se mote para reflexão, a qual citamos na íntegra:

Si se calla el cantor calla la vida
porque la vida misma es todo un canto,
si se calla el cantor muere de espanto
la esperanza, la luz y la alegría.
Si se calla el cantor se quedan solos
los humildes gorriones de los diarios,
los obreros del puerto se persignan,
quién habrá de luchar por sus salarios.
Qué ha de ser de la vida si el que canta,
no levanta su voz en las tribunas,
por el que sufre, por el que no hay ninguna razón
que lo condene a andar sin manta.
Si se calla el cantor muere la rosa,
de qué sirve la rosa sin el canto,
debe el canto ser luz sobre los campos,
iluminando siempre a los de abajo.
Que no calle el cantor porque el silencio,
cobarde apaña la maldad que oprime,
no saben los cantores de agachadas,
no callarán jamás de frente al crimen.
Que se levanten todas las banderas,
cuando el cantor se plante con su grito,
que mil guitarras desangren en la noche,
una inmortal canción al infinito. 
 
 
 
Horário Guarany, artista representativo do folclore argentino e de grande inspiração para muitos artistas do nativismo gaúcho, expõe através dessa canção sua posição enquanto artista, enquanto ser político. Pede que os cantores (e aqui pode-se ler artistas) não se calem, que usem de sua voz para melhorar a sociedade. Pois se se calam o que será dos menos favorecidos? Dos que não tem voz? Para Horácio Guarany é missão do artista se levantar, questionar, cantar e através de sua arte dar voz aos menos favorecidos.  Dessa forma, percebemos uma postura crítica e esclarecida do autor do papel político que a música tem, como dissemos acima. Não se faz arte sem ideologia! Não se faz arte só por beleza, pois até o senso estético, relacionado ao gosto musical, é uma questão ideológica, jamais vazia de significados.

Fato interessante é que essa mesma canção foi gravada pela cantora e acordeonista gaúcha Mary Teresinha em seu disco intitulado “Km 1” (1987), em versão traduzida para o português (Versão: Camarguinho - Participação: Antônio Gringo). É notável, não só neste álbum, mas em diversas gravações da musicista, como a questão da desigualdade social é evidenciada através de letras de canções que falam em favor das classes desfavorecidas. Importante percebermos que esse eu-lírico é feminino, em confluência com o assunto de música e gênero que viemos abordando há alguns dias. Inclusive, precisamos falar sobre Mary Terezinha, e assim o faremos em uma oportunidade próxima. Por agora, pensemos o que significa uma mulher na década de 80 posicionar-se desta forma, especialmente no Rio Grande do Sul? Talvez por ser vista sempre como coadjuvante da história de Teixeirinha, (tanto que foi apelidada como “Teixeirinha de saias”) até hoje seu engajamento social em canções tem sido pouco evidenciado e valorizado pelos pesquisadores. Uma pena, tendo em vista a figura expressiva que ela representa para a música gauchesca, para as mulheres e para os desfavorecidos, tendo como base alguns de seus álbuns que evidenciam esse assunto.   


Mas, voltando ao tema, é crucial destacar que a historiografia mais tradicional do Rio Grande do Sul foi criada por intelectuais advindos das classes dominantes, ou seja, pessoas ligadas as heranças do latifúndio e da criação extensiva de gado. Assim como os criadores do tradicionalismo gaúcho. E da grande mídia em geral. No entanto, em meados dos anos de 1970 outras visões e vozes surgem, tanto na historiografia quanto no gauchismo dentro dos contextos de ditaduras civis-militares na América Latina. Essas vozes, buscavam aproximação com a realidade explorada e pobre desses países, de falar também dessa gente e de sua vida. Dessas versões surgem os “gaúchos a pé”, os que outrora eram peões e agora sem emprego no campo, dominado pelo agronegócio, tentam uma vida digna nas cidades tornando-se proletários.

No entanto, é comum, atualmente, vermos em entrevistas muitos artistas ligados a música gaúcha constantemente evidenciarem e justificarem o seu contato com o ambiente rural, seja por meio da criação de gado, ou de cavalos, ou com algum tipo de plantação agrícola. Fica assim explícita a necessidade de demonstrar esta ligação, por ser considerada questão importante para justificar sua credibilidade em poder relatar as informações representadas nas canções, através do contato com o universo campeiro, mesmo que essa não seja, de fato, a sua realidade cotidiana. A partir das falas de alguns interlocutores em minha (Clarissa) pesquisa de mestrado (Campeirismo musical e os festivais de música do sul do Brasil: a (pós) modernidade (re) construindo o ‘gaúcho de verdade) essa questão ficou bem clara, notamos que a origem dos artistas ligados à música gaúcha advém de diversificados meios, sendo muitos citadinos e sem ligação familiar com o campo.

Em decorrência dessas constatações, ficou evidente uma série de questões que, para finalizar, compartilhamos com vocês no intuito de ampliar esse debate: Se a base das representações de arte e identificação do Rio Grande do Sul vem de uma ótica baseada no universo latifundiário, será que hoje elas são válidas visto que vivemos de outro modo? O artista com voz atualmente no cenário gauchesco advém dos ambientes culturais aos quais defendem em suas canções? Há uma consciência sobre o que se canta? De que lugar social partem as vozes artísticas? Esses lugares são assumidos claramente? Que vozes pretendem esses artistas representar? Que interesses estão por trás das canções? Por que muitas vezes se calam?


Fonte: blog Gauchismo Líquido