Recentemente participei do programa Galpão Crioulo trazendo algumas reflexões em forma de música. Uma delas falava sobre a destruição d...
Recentemente participei do programa
Galpão Crioulo trazendo algumas reflexões em forma de música. Uma delas
falava sobre a destruição da pampa devido às plantações de eucalipto e
áreas de pastagem (link), e outra discorria sobre a cultura gaúcha ser
baseada no patriarcado, no mito do centauro e no mito ocidental da
macheza (link). Já havia discutido o segundo tema no Gauchismo Líquido
algumas vezes, em forma de artigo. O assunto, no entanto, tomou certa
proporção midiática com a citação do mesmo por outro texto escrito pela
cantora e apresentadora do programa Shana Muller, em abril de 2017
(link), que pedia aos colegas músicos repensarem seus repertórios ao
tratarem de forma depreciativa as mulheres em canções. Vale ressaltar
aqui que o convite para a minha participação no programa se deu através
da sugestão dela.
A partir do convite comecei a pensar o que apresentaria nesta oportunidade e o que me representaria. Se seriam músicas do meu repertório instrumental ou minhas recentes composições. Após muita reflexão e levando em conta o público e a significância de estar naquele lugar, resolvi cantar o que eu mesma havia escrito. Diversas outras vezes já havia participado do programa para acompanhar outros músicos – inclusive, a última participação (anterior a essa) foi em um especial em homenagem a Paixão Côrtes, com ele presente e suas adjetivações sobre mim como “rabequista” (situação que inspirou o texto – Uma rabequista!). Confesso que a posição de instrumentista sem verbalizar começava a me incomodar. Poder trazer as reflexões, estudos e pesquisas em canção, um formato que compacta tão bem as mensagens em poucos minutos, tem sido uma grande descoberta.
Venho escrever sobre esse fato pela relevância reflexiva que considero. Desde que foi ao ar e disponibilizado na internet, ouvi diversos comentários interessantes, diferentes de críticas pesadas que esperava com receio, e que algumas vezes já ouvi por parte dos mais conservadores e que Shana por ocupar o lugar que ocupa, recebeu através de comentários na internet após abordar o tema. Desta vez percebi atenção ao que foi cantado, percebi escuta. Ou seria uma falta de ar para atitudes contrárias? Prefiro acreditar na primeira opção.
As críticas trazidas nas canções tratam de uma conjuntura cultural. São estruturais e não pessoais. Ao discorrer sobre o mito do gaúcho, como um mito ocidental comum em populações com ligação ao cavalo e ao trabalho agropastoril, problematizo outras significâncias envolvidas em tais entendimentos sociais. Podemos sim, apontar atitudes, comentários e proibições que não colaboram com a igualdade de gênero, mas só repetir fatos isolados nos deixa longe de ir no cerne da questão. Precisamos de fato compreender o que está atrás de toda a construção identitária.
Nos anos de experiência na música regional e na pesquisa de doutorado onde entrevistei diversos músicos do segmento regional, ficou aparente a ligação com a cultura gaúcha por razão da música, no sentido mais laboral e prático possível: um nicho de mercado onde pudesse haver um retorno financeiro estável e proporcionar o sustento do músico. É pelo amor à música. Nesse montante entram questões ideológicas que muitas vezes são incorporadas na prática musical sem uma profunda reflexão. Afinal, é dessa forma que perpassam as tradições, entendidas como incontestáveis.
Mexer com algumas destas estruturas, como vemos, pode causar determinados desconfortos, mal estares. Situações antes não vistas pedem de forma inconsciente uma explicação, como algo que nunca fora visto antes que pede definição, ou um outro modo de lidar perante ao novo. Às vezes causa estranheza levar determinados climas, “pesar rolês”, mas já é hora de quebrar esse silêncio. Ainda creio que seja possível. Ver o movimento liderado e promovido por mulheres na cidade tem servido como alimento nesses tempos críticos. Ver o show da banda Mulamba em Porto Alegre na última sexta no Theatro São Pedro foi um alento ao considerar o tempo que se passou de hegemonia masculina na música quase que total.
Talvez as coisas se aclarem com o tempo, mesmo que acredite que por si só não irão se transformar. Talvez a sociedade entenda de vez o que é viver em um patriarcado, e como isso fala muito mais sobre poder e política do que sobre biologia. Ou talvez as contradições existentes nessa relação de dominação só dependam de uma observação atenta das manifestações culturais que a sustentam ideologicamente.
Fonte: blog Gauchismo Líquido, de Clarissa Figueiró Ferreira
A partir do convite comecei a pensar o que apresentaria nesta oportunidade e o que me representaria. Se seriam músicas do meu repertório instrumental ou minhas recentes composições. Após muita reflexão e levando em conta o público e a significância de estar naquele lugar, resolvi cantar o que eu mesma havia escrito. Diversas outras vezes já havia participado do programa para acompanhar outros músicos – inclusive, a última participação (anterior a essa) foi em um especial em homenagem a Paixão Côrtes, com ele presente e suas adjetivações sobre mim como “rabequista” (situação que inspirou o texto – Uma rabequista!). Confesso que a posição de instrumentista sem verbalizar começava a me incomodar. Poder trazer as reflexões, estudos e pesquisas em canção, um formato que compacta tão bem as mensagens em poucos minutos, tem sido uma grande descoberta.
Venho escrever sobre esse fato pela relevância reflexiva que considero. Desde que foi ao ar e disponibilizado na internet, ouvi diversos comentários interessantes, diferentes de críticas pesadas que esperava com receio, e que algumas vezes já ouvi por parte dos mais conservadores e que Shana por ocupar o lugar que ocupa, recebeu através de comentários na internet após abordar o tema. Desta vez percebi atenção ao que foi cantado, percebi escuta. Ou seria uma falta de ar para atitudes contrárias? Prefiro acreditar na primeira opção.
As críticas trazidas nas canções tratam de uma conjuntura cultural. São estruturais e não pessoais. Ao discorrer sobre o mito do gaúcho, como um mito ocidental comum em populações com ligação ao cavalo e ao trabalho agropastoril, problematizo outras significâncias envolvidas em tais entendimentos sociais. Podemos sim, apontar atitudes, comentários e proibições que não colaboram com a igualdade de gênero, mas só repetir fatos isolados nos deixa longe de ir no cerne da questão. Precisamos de fato compreender o que está atrás de toda a construção identitária.
Nos anos de experiência na música regional e na pesquisa de doutorado onde entrevistei diversos músicos do segmento regional, ficou aparente a ligação com a cultura gaúcha por razão da música, no sentido mais laboral e prático possível: um nicho de mercado onde pudesse haver um retorno financeiro estável e proporcionar o sustento do músico. É pelo amor à música. Nesse montante entram questões ideológicas que muitas vezes são incorporadas na prática musical sem uma profunda reflexão. Afinal, é dessa forma que perpassam as tradições, entendidas como incontestáveis.
Mexer com algumas destas estruturas, como vemos, pode causar determinados desconfortos, mal estares. Situações antes não vistas pedem de forma inconsciente uma explicação, como algo que nunca fora visto antes que pede definição, ou um outro modo de lidar perante ao novo. Às vezes causa estranheza levar determinados climas, “pesar rolês”, mas já é hora de quebrar esse silêncio. Ainda creio que seja possível. Ver o movimento liderado e promovido por mulheres na cidade tem servido como alimento nesses tempos críticos. Ver o show da banda Mulamba em Porto Alegre na última sexta no Theatro São Pedro foi um alento ao considerar o tempo que se passou de hegemonia masculina na música quase que total.
Talvez as coisas se aclarem com o tempo, mesmo que acredite que por si só não irão se transformar. Talvez a sociedade entenda de vez o que é viver em um patriarcado, e como isso fala muito mais sobre poder e política do que sobre biologia. Ou talvez as contradições existentes nessa relação de dominação só dependam de uma observação atenta das manifestações culturais que a sustentam ideologicamente.
Fonte: blog Gauchismo Líquido, de Clarissa Figueiró Ferreira
Nenhum comentário